Há uma beleza inegável e uma satisfação em criar cores a partir de recursos naturais, uma prática tão antiga quanto a própria humanidade. Em uma era de produção industrial, existe algo profundamente gratificante em criar suas próprias cores usando métodos tradicionais. Este artigo leva você em uma viagem fascinante de volta às raízes da arte, ensinando a criar pigmentos naturais em casa, de forma artesanal, como nossos ancestrais faziam, mas com um toque de modernidade.

A tecnologia de produção de tintas e pigmentos naturais remonta à civilizações muito antigas. Alguns processos inclusive tendo sido criados e desenvolvidos de forma independente em diferentes civilizações que nem tinham contato entre si, a exemplo do pigmento índigo.

O índigo, com seu tom azul profundo e enigmático, é um exemplo clássico da riqueza e diversidade dos pigmentos naturais. Extraído de várias espécies de plantas índigo, como Indigofera tinctoria e Isatis tinctoria, este pigmento era valorizado em culturas tão distantes quanto a Índia, o Egito e a Mesoamérica. O processo de obtenção do índigo, embora variando em técnicas específicas entre as civilizações, geralmente envolvia fermentar as folhas das plantas para liberar o precioso corante. Esta prática ancestral, que transcende fronteiras geográficas e culturais, reflete não apenas a habilidade humana em adaptar-se aos recursos disponíveis, mas também nossa busca incessante pela beleza e pela expressão artística. O índigo é um testemunho da nossa conexão histórica com as cores da natureza e do nosso engenho em transformar elementos naturais em arte.

Na ausência da tecnologia industrial moderna, da indústria petroquímica e do avançado conhecimento químico que possuímos hoje, as civilizações antigas se valiam exclusivamente de processos manuais e artesanais para a criação de tintas e pigmentos. Estas técnicas, embora variadas em insumos e métodos, muitas vezes envolviam substâncias de diferentes graus de periculosidade. A boa notícia é que podemos replicar esses processos antigos de forma artesanal e segura, mesmo em casa, utilizando materiais facilmente acessíveis. Este resgate de métodos tradicionais não só nos conecta com a história da arte, mas também nos permite explorar a criação de cores vibrantes de maneira responsável e sustentável.

Em meio a esta rica tapeçaria de técnicas, destaca-se a fascinante categoria dos pigmentos laca. Únicos em sua composição e método de produção, os pigmentos laca foram historicamente conhecidos por sua versatilidade e beleza. Esses pigmentos são criados através de um processo que transforma corantes solúveis em água em formas insolúveis, permitindo sua utilização em uma variedade de meios artísticos. Essa técnica artesanal pode ser produzida com ingredientes e métodos acessíveis, até mesmo em um ambiente caseiro. No decorrer deste artigo, exploraremos como você pode recriar esses pigmentos laca em casa, utilizando métodos seguros e materiais facilmente disponíveis, trazendo um pedaço da história da arte para o seu espaço criativo.

Preparação: Encontre seus materiais

Em tese, qualquer planta que, ao colocar em água, deixa uma solução colorida, pode potencialmente se utilizada nesse experimento de extração de pigmento natural.

Porém devido às particularidades de cada molécula nessa solução, os resultados podem variar. Por exemplo, muitas substâncias são sensíveis ao pH e alteram de cor com a variação na acidez da solução. E utilizamos ácidos e bases no preparado.

Então, não é garantia obter exatamente a cor que está na solução, e na verdade nem é garantido conseguir alguma cor. Mas é válido o teste para descobrir!

Nesse experimento, utilizei Romã, e você pode utilizar também Calêndula ou Macela para conseguir pigmentos naturais em tons de amarelo similares. Pode também testar alguma outra que queria experimentar para ver o que acontece! Mas adianto que hibisco não é uma boa alternativa, muito sensível ao pH e altera bastante de cor e pode ser muito frustrante como primeiro experimento! Seja como for, não esquece de me contar o que você testou e qual foi o resultado!

Bem, agora vamos aos químicos! Além do material botânico para extração, precisaremos também de alume (pedra Hume) e carbonato de sódio. Pode usar também o bicarbonato, mas pode ser que não consiga o mesmo resultado, por ser uma base mais fraca (dica: pode esquentar o bicarbonato no forno com uma travessa, que ele será transformado em carbonato). Mas cuidado ao manipular o carbonato! Olha as informações de segurança do Wikipedia:

Causa irritação se ingerido ou inalado em grandes quantidades ou quando em contato com a pele por tempo prolongado. Pode provocar queimaduras graves se em contato com os olhos. Não apresenta riscos em incêndios, sendo usado até mesmo como agente contra o fogo.

Wikipedia

Então, bastante cuidado na manipulação!

Além disso, será necessário que tenha frascos de vidro para fazer as misturas e uma panela ou chaleira para aquecer a água, e frascos para guardar os pigmentos.

Sempre bom também, ter uma etiqueta para anotar no produto final o que ele é!

Passo a Passo: O Processo de Extração de Pigmentos Laca

Agora, é a hora das mãos na massa! Vamos ao nosso tutorial de pigmento natural de laca!

Primeiro passo: preparar solução tintorial

O primeiro passo é esquentar água com o material botânico do qual se pretende extrair o pigmento, como se fosse fazer um chá. Mas é necessário tomar cuidado com a temperatura. A depender do componente químico, ele pode sofrer alterações devido à sua sensibilidade à temperatura. O ideal é deixar em fervura por um tempo mais longo (30-60min).

Pode colocar uma quantidade boa de água, entre 300 e 500ml. O ideal é que o líquido fique com uma cor bem marcada e forte! Alguns materiais podem demorar mais tempo para liberar uma boa concentração de cor.

Depois, precisamos filtrar essa solução, para retirar os restos de material botânico e também quaisquer impurezas que tenham vindo com ele. Filtro de café serve para isso, mas pode ser também um tecido de malha fina.

Pronto, temos nosso líquido colorido para transformar em pigmento!

Segundo passo: preparar soluções precipitantes

Agora, temos que preparar duas soluções que iremos misturar na anterior, em uma ordem específica!

A solução de alume, também chamado de pedra-ume (quimicamente, sulfato de alumínio e potássio), devemos adicionar aproximadamente 3-4 colheres de chá em 100ml de água quente. Mexa bastante até dissolver todo o alume. Se estiver com dificuldade, esquente mais ou coloque um pouco mais de água.

O alume age capturando as moléculas tintoriais solúveis, que dão cor à solução. Nesse momento, essas moléculas continuam solubilizadas, por isso não chamamos de pigmento, que é a partícula insolúvel. Visualmente, o alume intensifica a cor, e pode também mudar de cor devido às características químicas das moléculas presentes. Ele também acidifica a solução, e para alguns compostos isso também faz mudar a coloração. No caso do nosso exemplo de Romã, não acontece alteração na cor.

A outra solução necessária é de carbonato de sódio. Dissolve-se também em água quente (assim dissolve mais rápido). O carbonato de sódio é uma base, elevando o pH da solução. Ele reage com as moléculas da tintura e com a água, liberando CO2 e formando o precipitado sólido, que é o nosso pigmento natural.

Terceiro passo: formação do precipitado

Com as dois químicos preparados, é hora de fazer a precipitação ocorrer!

Primeiro adicionamos a solução do alume, intensificando a cor da nossa solução. Algo interessante para se testar é também utilizar o alume direto na solução inicial que ferve com o material da planta. Isso pode favorecer que libere ainda mais composto tintorial na solução.

Finalmente, adicionamos a solução de carbonato de sódio e voilá! O precipitado começa a formar. Mas CUIDADO, essa solução precisa ser adicionada aos poucos, devido à reação química que libera CO2. Isso não é perigoso, entretanto pode efervescer bastante, espumar e transbordar do frasco. Então, adicione aos poucos e vai mexendo a solução, para que a reação ocorra mais rápido.

Na química da coisa, o que ocorre é que o alume se liga ao material colorante, depois o carbonato de sódio dissolvido na água libera CO2 (por isso a efervescência), e o precipitado é um hidróxido de alumínio complexado com o componente colorante. Normalmente, sem o material colorante poderia haver precipitação de hidróxido de alumínio simples. Assim, o nosso pigmento natural sólido precipitado é algo como um hidróxido de alumínio-colorante.

Quarto passo: separação do pigmento

Finalmente, com o precipitado formado, agora precisaremos separar do líquido para guardar o nosso pigmento natural e usar conforme necessidade.

Primeiro, devemos deixar descansando um tempo. Pelo menos uma noite. Assim, todas as partículas sólidas vão sedimentar no fundo do frasco. Com cuidado, podemos escorrer a água sem perder muito do pigmento formado.

Após isso, precisaremos, via de regra, repetir para limpar o pigmento. Ou seja, após tirar quase toda a água, devemos encher o frasco novamente de água, e esperar decantar de novo. Isso deve ser feito pelo menos uma vez, pois ainda devem existir compostos presentes entre o sedimento do sólido que não desejamos lá. Então, para uma purificação melhor, é bom lavar um pouco, repetindo esse processo. Se no resultado final, a parte líquida ainda tiver bastante cor, é mais importante ainda que esse processo seja feito algumas vezes.

Por fim, quando julgar que lavou o suficiente, devemos filtrar, com uso de um filtro de café. Assim, a água (e os compostos solubilizados nela) irão embora, e o filtro de café irá capturar o sedimento (nosso pigmento laca natural!).

Após isso, é só esperar secar e armazenar em um frasco para uso posterior.

Abaixo, um vídeo que fiz no canal a algum tempo atrás sobre isso! Você pode assistir também, e pode colocar suas dúvidas e compartilhar suas experiências nos comentários de lá, ou aqui no blog mesmo!

Conclusão/Final

Agora, você pode testar esse mesmo processo com infinitos materiais para testar que tipo de pigmento natural você consegue obter. Também pode inverter a ordem do alume e do carbonato, para descobrir o que ocorre (muitas vezes deve ser o mesmo, mas alguns casos, vira outra coisa).

Além disso, proporções específicas, e outras substâncias podem ser mais efetivas para certos materiais, em especial quanto ao tipo de base utilizada. Além do carbonato de sódio também podemos utilizar carbonato de cálcio, carbonato de potássio, e outras bases mais fortes e mais perigosas de manusear. Cada material pode ter eu processo ótimo de extração e somente com a experimentação contínua podemos descobrir!

Se você tem uma enorme curiosidade de descobrir esses resultados, seja bem vindo e bem vinda à esse mundo! E não esqueça de compartilhar comigo os seus resultados, dúvidas e sugestões, seja por aqui, pelo meu canal no YouTube, no Instagram, ou até por e-mail!

Sucesso nos experimentos!


5 comentários

Carla Francis · Abril 29, 2024 às 3:25 pm

Alex, estou feliz por você voltar a compartilhar suas experiências e vivenciar esse mundo das cores e arte.

ROSE COSTA · Junho 14, 2024 às 11:11 am

amando o conteúdo e riqueza de detalhes, obrigada!!!!

ROSE COSTA · Junho 14, 2024 às 11:13 am

Quero deixar meu instagram, sou designer de estampas e esses pigmentos irão enriquecer meu trabalho!
@mesaepao

ROSE COSTA · Junho 14, 2024 às 11:14 am

https://www.instagram.com/mesaepao/

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